ISU é um robot capaz de pintar e escrever. É também o primeiro que assina as suas obras.
Em 2009 publicou um livro de poemas automáticos.
ISU tem ainda a capacidade de pintar figuras. Neste caso é fornecido um modelo e o robot tenta reproduzir os contornos.
Prefácio de Cristina Robalo Cordeiro
Se o nome e a obra de Leonel Moura são já familiares desde há muitos anos para a maior parte de nós, a sensação de insólito que com eles se prende permanece, todavia, inteira e intacta. Não que o artista e a sua arte cultivem sistematicamente o gosto da novidade como manda a moda, mas sim que o surgimento perpétuo do novo, na sua radical imprevisibilidade, caracteriza e define a verdadeira criação. Face às multiplicadas provas da sua inventividade, importaria quase evitar a palavra já cansada de inovação no caso de Leonel Moura, essa famosa “inovação” tornada um pouco suspeita de tanto ser invocada como uma nova virtude cardinal, senão teologal.
E no entanto é, no sentido mais autêntico e mais radical do termo, de inovação que se trata, hoje como ontem, com os Robots insectos, o Robotarium, RAP (o robot pintor), a fascinante “Swarm Sculpture” de 2001 e tantas outras produções saídas das mãos pródigas – e prodigiosas – de um artista que é também um perfeito homem de ciências. Sinto-me no direito de fazer o elogio mais vibrante do Embaixador português do Ano Europeu da Criatividade e da Inovação sem correr o risco de ofender a sua modéstia pois não é dele que vou aqui falar, mas da sua última criação ou antes da sua nova recém-nascida criatura.
É inútil que precise que é a primeira vez na minha vida que tenho a honra de apresentar o livro de um robot e que, mesmo se já tive ocasião de introduzir poetas artificiais ou que cedem demasiado facilmente aos automatismos verbais, a sua artificialidade e os seus automatismos não lhes eram no entanto geralmente consubstanciais.
Mas no momento de dirigir a minha atenção para os textos assinados por ISU, sou tomada de uma espécie de dúvida. Será uma professora de literatura a pessoa mais indicada para levar a cabo uma tarefa difícil que exigiria uma competência tecnológica que não possuo? Pois por mais que passe, como toda a gente, a maior parte dos meus dias entre um computador e um telemóvel, devo reconhecer que tudo ignoro do seu mecanismo interno que é, diga-se de passagem, muito mais admirável do que as mensagens que me permitem enviar ou receber.
Mas pareceu interessante aos organizadores (a quem agradeço terem pensado em mim) tentar a experiência de colocar uma iletrada em matéria de robótica perante um artefacto absolutamente inédito. Sinto-me como uma cobaia inocente posta em presença de um fenómeno material inaudito para estudo das suas/minhas reacções. Avançarei, pois, com muita prudência em direcção ao objecto que é proposto à minha atenção para não receber as descargas eléctricas que sancionam os erros dos ratinhos dos nossos laboratórios de psicologia comportamental.
Eis como vou proceder.
Num primeiro tempo, que não será tempo perdido, interrogar-me-ei sobre a significação geral, isto é, metafísica, de um empreendimento tão singular quanto o é a redacção de um livro por uma máquina. Num segundo momento, examinarei estas páginas extraordinárias e as palavras que contêm perguntando-me em que medida estamos perante poemas na acepção precisa do termo. E se acontecer que responda negativamente a esta questão, o que ainda não sei se farei, explicarei, num terceiro momento, a razão pela qual, apesar de tudo, é legítimo falar de poesia robótica.
Começo por algumas considerações sobre o problema metafísico, essa metafísica que Descartes, no Prefácio dos Principes de la Philosophie, assimilava às raízes da árvore do Conhecimento. E quando falamos de autómatos, é justo mencionar o filósofo do Discours de la Méthode cuja principal preocupação era fazer progredir o mais rapidamente possível as artes mecânicas que, com a medicina e a moral, formavam os ramos dessa árvore cujo tronco era a física.
Separando nitidamente o pensamento e a extensão, Descartes libertava todas as potencialidades da matéria e, sem querer, condenava a alma a um isolamento crescente. Mas a ideia cartesiana de animal-máquina teria de esperar pela descoberta da electricidade e pela invenção da electrónica para se transformar na ideia – e na realidade – de máquina-animal que hoje conhecemos. Já na segunda das Méditations Métaphysiques do pensador francês encontramos uma alusão a homens artificiels “qui ne se remueraient que par ressort” e de aparência semelhante aos transeuntes que passeiam na rua, debaixo da sua janela, de chapéu e casaco comprido.
Na excelente síntese que Carlos Fernandes consagra às relações entre a ciência e a arte e que acompanha o catálogo da exposição Robot arte organizada pela Câmara Municipal de Óbidos, não se faz curiosamente referência à muito negativa influência de Descartes sobre o casamento até então feliz da ciência e da estética e que nomes como os de Alberti, Leonard da Vinci e Miguel Ângelo tão bem ilustram.
Mas Descartes não previra a expansão da biologia. Assistimos hoje a uma simbiose inesperada entre as ciências da vida, a robótica e a neurologia. E como teria o fundador da ciência moderna podido imaginar que houvesse o mais pequeno parentesco entre um formigueiro e um cérebro humano, analogia que a robótica iria por assim dizer modelizar como faz Leonel Moura na sua perturbadora e sublime “swarm sculpture”?
E, no entanto, Descartes não era insensível à poesia pois que nos diz ter hesitado na sua juventude entre as duas carreiras, a literária e a científica. Mas como teria ele podido conceber que em 2009 seria exposta, no Museu da Água de Coimbra, a obra poética de um autómato, entidade que, por definição, ele teria reduzido a um puro mecanismo, desprovido de todos os atributos que fazem um poeta, e desde logo, da paixão e da imaginação? A hipótese de uma poesia fabricada por um engenho não o teria, no entanto, chocado mais do que a invenção por Blaise Pascal de uma máquina de calcular, na medida em que os tratados de retórica, frequentes na sua época, ensinavam a racionalizar e logo a mecanizar o emprego das figuras e de todos os processos que agem sobre a sensibilidade do leitor. Um tratado de retórica ou um dicionário de rimas são já, à sua maneira, dispositivos materiais próprios para provocar, no destinatário, o efeito poético. Paul Valéry ia ao ponto de dizer que um poema é uma máquina destinada a desencadear a inspiração no leitor. E é mesmo aos sofistas gregos que podemos fazer remontar esta concepção tecnicista da arte literária, sendo o essencial que o receptor seja uma pessoa de coração e de corpo.
Em reacção à representação mítica e quase religiosa da poesia, qualquer tradição literária, desde finais da Idade Media, quis colocar a tónica na tecnicidade e no virtuosismo em detrimento da sinceridade dos sentimentos. Não é, pois, da tentativa subversiva de Dada e dos surrealistas que data a dessacralização do lirismo. É verdade que os autores que praticavam esta profanação da Musa eram eles próprios espíritos e que Isidore Isou, o inventor do Letrismo, a quem Leonel Moura quis prestar homenagem baptizando o seu robot Isou (ISU) era também ele dotado de alma quando se entregava a estas composições erráticas de fonemas.
ISU, o pequeno autómato, não tem consciência de existir e não poderia escrever “cogito ergo sum” senão se o seu genitor o tivesse programado para esse efeito deixando-lhe a possibilidade de reunir, aleatoriamente, as letras destas três palavras sobre uma folha de papel. Aliás, que o acaso seja poeta, é ainda uma opinião partilhada desde há muito por poetas e teóricos da poesia como Stéphane Mallarmé.
Assim, nem o aspecto mecânico nem o aspecto aleatório da literatura são hoje (e desde há muito) um escândalo para ninguém, deslocando-se toda a questão do autor, homem ou aparelho, para o leitor vivo e sensitivo, sem a intervenção do qual a obra produzida permanece letra morta.
Chega assim a hora de um robot poeta, maravilha do engenho da cibernética, e depois de um longo trabalho de reflexão sobre a poesia e mais largamente sobre a literatura que nos havia já ensinado a não ver no texto outra coisa senão um dispositivo semiótico. ISU é a prova material, para retomarmos a fórmula de Sartre, de que “o homem é uma paixão inútil”.
Este materialismo poético faz da criatividade uma função e não mais um dom dos deuses. Podemos supor, podemos esperar que Leonel Moura continuará a aperfeiçoar ISU e que estará um dia em condições de nos apresentar um autómato chamado Pessoa, o que, seguramente, representará um novo “creative leap” e talvez mesmo um progresso decisivo para a fabricação da consciência artificial. Pessoa ou melhor, em francês, Personne, pois que personne significa ninguém e que um robot é, até nova ordem, “personne”.
Passo agora ao meu segundo ponto que vai trazer algumas restrições ou contradições ao primeiro. Aceitámos um postulado: que ISU é com efeito um robot poético (e poeta no sentido etimológico não quer dizer outra coisa senão aquele que faz ou fabrica). Mais ainda, aceitamos, como escreve Leonel Moura no primeiro parágrafo do seu estimulante manifesto da Poesia Robótica, que serve de Prefácio à Antologia, que ISU é “ o derradeiro Dadaísta, o supremo Letrista, o primeiro grande poeta da era das máquinas criativas”.
É verdade que ISU seria menos convincente se o seu criador, em lugar de lhe ter oferecido um léxico extraído de obras de poetas humanos (e em primeiro lugar de Herberto Hélder), lhe tivesse ensinado a compor palavras provindas do vocabulário da empresa ou da medicina. E não é certo que palavras como
Onda
Sal
Noite
Areia
Sombra
poderiam formar só por si e na sua simples ordenação uma composição poética que fariam a felicidade de muitos aprendizes de poetas?
Mas podemos mostrar-nos exigentes e pedir ao poema que seja mais do que uma montagem de signos linguísticos sobre um qualquer suporte, página, ecrã ou mesmo parede ainda que, mais uma vez, a ambição de muitos escritores não vá mais além. Costumo pedir ao poema que cumpra quatro condições que são como as constantes do discurso poético, pelo menos aos olhos dos críticos de hoje. A primeira é a sistematicidade, a organização sistémica dos elementos gráficos, sonoros e semânticos: a distribuição em linhas distintas é já uma primeira etapa para esta sistematicidade, etapa atingida por ISU sem dificuldade. Uma produção como a seguinte:
Bela Mundo
Lua Mundo
graças à simetria e às assonâncias fortifica esta sistematicidade que se verifica igualmente no plano semântico, o bela e o nua correspondendo-se como num eco. Um outro texto:
Pedra
Ave
Nada
conforma-se à mesma regra de organicidade reforçada pela assonância e o interesse da oposição semântica entre o peso da pedra e a leveza da ave.
A segunda característica de um poema é ser uma aventura da linguagem, isto é, uma “solicitação máxima dos recursos linguísticos na sua relação com a significação” (Gérard Dessons). Não recusaremos aos textos de ISU esta dimensão experimental que é a própria marca de qualquer inovação verbal. As palavras (de que todas as categorias aqui estão representadas, o substantivo, o verbo, o adjectivo, o advérbio, as preposições) tendem em direcção a um sentido novo que cabe ao leitor descobrir mas é esta dimensão perigosa para a significância que faz em grande parte a poeticidade destes pequenos textos que são outros tantos “coups de dés” e, literalmente, experiências de laboratório.
So far, so good. É com estes dois últimos requisitos que as coisas se complicam. Um poema, para ser identificado como tal, implica uma relação ao Sujeito, ao Eu. O escritor, ou o scriptor escreve para se tornar aquele que ainda não é. Um poema não deixa nunca o autor no estado em que o encontrou. Mas será que ISU se transformou depois das suas composições? Sem dúvida que um dia isso acontecerá, mas ser-lhe-á para tal necessário adquirir a memória indispensável à constituição de uma subjectividade. Regressamos assim à questão metafísica ou psicológica primeira: um poema que não seja a expressão de um Sujeito ou de um Alguém (mesmo anónimo) será verdadeiramente um poema? Historicamente, a resposta é não, mas temos que reconhecer que ISU abre um espaço novo, na fronteira do humano e do não-humano, onde os poemas serão menos exercícios de escrita do que de leitura. Já a poesia dita “concreta” e os caligramas nos haviam acostumado à ideia de poemas puramente plásticos que em nada comprometem o destino do autor. De resto, associar a poesia ao lirismo não é mais do que um preconceito e se ISU nos dá a ler uma poesia sem sujeito, isto é, sem verdadeira génese, sem história e sem inconsciente, por que razão haveria esta discrição de retirar o estatuto de poemas a estes textos onde pode investir-se, à vontade, a subjectividade do leitor?
Mas se não é necessário ter uma alma para criar (e a informática tirou-nos definitivamente a ilusão de pretendermos ocupar um lugar privilegiado na Criação), podemos – e enquanto professora de literatura devo – examinar as peças seleccionadas por Leonel Moura correspondendo às exigências constitutivas de um poema.
Na verdade, coloco a mim mesma a mesma pergunta de cada vez que leio textos poéticos contemporâneos. Já lá vai a época em que poesia queria dizer metro, rima, ou, por outras palavras, versificação. Bastam hoje algumas palavras distribuídas sobre a página para sugerir que o texto apresentado é um poema: o branco e a descontinuidade substituíram as convenções formais de outrora.
Se considerarmos válida uma tal concepção minimal ou minimalista do poema, as produções de ISU são poemas e as mais das vezes muito sugestivos como o que cito:
Fome
Sexo
Vento
Mulher
Nua
Ou aquele outro, mais trágico:
Sangue
Noite
Ideia Morte
Triste
Atingem-se aqui os limites do que os linguistas chamam um enunciado incoerente.
Mas nem sempre ISU é tão feliz nas suas escolhas aleatórias quando escreve em catalão ou em inglês, língua que creio não dominar tão bem. Todavia, o texto:
She Body
By Do
Yes
perde em consistência lógica o que ganha em vigor rítmico graças ao jogo aliterativo dos b e dos d e à progressiva diminuição do número das sílabas: três (She Body), duas (By Do), uma (Yes).
Finalmente, quarto critério, o mais embaraçoso: a dimensão política ou comunitária. Mais ainda do que na condição precedente é a enunciação que determina a pertença do texto à classe dos poemas, marcando as relações interpessoais. Pela linguagem e na linguagem um poema institui um laço entre os sujeitos e a comunidade. Um poema, nesta perspectiva, não é apenas um objecto textual mas a palavra de um sujeito que se dirige a uma colectividade de sujeitos, à “tribo” de que falava Mallarmé. Neste âmbito, os poemas de ISU sofrem talvez de autismo mas partilham essa patologia com tantos outros actuais poetas e poemas…
Em suma, não vejo obstáculo definicional em atribuir o estatuto de poemas às produções de ISU mesmo se, nos dois últimos pontos, manifesta fraquezas. E mesmo se um juiz severo os recusasse por não serem feitos senão por palavras (pois a Linguagem, sobretudo quando falada por um poeta, é muito mais do que palavras soltas), ser-nos-ia possível apreciar a “poesia”, a pungente poesia dos “documentos” que nos são aqui propostos.
Resumirei, em alguns breves comentários conclusivos, este terceiro momento da minha análise. Nada disse até agora da grafia ou, dito de outro modo, da mão de ISU.
Confesso que é essa escrita trémula, um pouco tosca e infantil, onde por vezes as linhas se cruzam e se sobrepõem, que me toca mais particularmente e onde reconheço o artista que é Leonel Moura. Mais do que ter posto ISU a escrever à máquina – o que tecnicamente teria sido evidentemente mais fácil – o seu pai ensinou-o a escrever à mão, em modo humano, com as hesitações e as maladresses comoventes.
Se apenas tivéssemos a transcrição dactilografada destas páginas, seríamos menos sensíveis à sua poesia, isto é, em absoluto, ao seu mistério. Mas se é possível conceber poemas sem mistério, haverá uma poesia sem mistério? Mais ainda do que nas letras associadas em palavras ao sabor do acaso e do vocabulário disponível, é no desenho indeciso dos caracteres que encontro o grande mérito onírico da obra. Alguma coisa aqui procura escrever-se e fazer-nos sonhar sobre a própria matéria quando ela se organiza em busca de um sentido improvável, quando evolui timidamente em direcção ao espírito. Na verdade, estas páginas convidam-nos a essa meditação particular que, na língua francesa, se designa por rêverie: rêverie sobre a própria escrita, entre extensão e pensamento, entre a matéria e a alma. Se é pouco provável que um grafólogo forneça relevantes informações sobre a personalidade de ISU (ainda que haja aqui uma experiência a fazer), podemo-nos comprazer em contrapartida na comparação destes desenhos de letras com os ornamentos que a natureza imprime aos minerais ou à pelagem singular dos animais, ou ainda a esses fratais da teoria do caos que organizam os cristais de gelo sobre um vidro.
É certo que ISU desenha mais do que escreve. Como Pinóquio ou o E.T. tornando-se verdadeiros meninos, ISU, ao soletrar com dificuldade, parece querer arrancar-se dolorosamente à sua natureza material e mecânica para entrar no reino do sentido e da liberdade. É este triunfo da liberdade e do sentido sobre a prisão da ignorância e do desespero que confere ao poema inglês, assinado ISU, o seu aspecto de inquietante estranheza: estamos perante um jogo de tinta, mecânico e irrisório, de uma marioneta muito sofisticada ou perante a emergência de uma consciência humana?
Em todo o caso, é significativo que o artista Leonel Moura tenha escolhido fechar o primeiro livro do seu robot com a única palavra metafísica – freedom – que sobreviveu à materialização do nosso mundo.
E é talvez dos robots, e seguramente dos seus criadores, que deveremos esperar a libertação e, em primeiro lugar, a libertação do nosso próprio imaginário. Nesta matéria, como em muitas outras, este pequeno livro de um ser sem alma é uma obra-prima de sabedoria.
Cristina Robalo Cordeiro
Coimbra, Museu da Água, 7 de Maio de 2009